Por muito má que saiba ser esta doença, nao consigo deixar de sentir um nozinho cá dentro quando vejo no "Harrison's Principles of Internal Medicine" (digamos que é, basicamente, um livrinho de bolso com cerca de 2500 páginas) as palavras "portuguese" ou "Portugal".
Pois é. Parece que não são só os alemães, franceses, ingleses ou americanos a participar num tratado de medicina. Nós também gostamos de ter o nosso voto na matéria. Nem que seja com uma doença que, apesar de ser tipicamente portuguesa [mais propriamente do Norte (o que acaba por ser um pleonasmo, mas não entremos por aí)], não é nada agradável.
Estou, claro, a referir-me à Paramiloidose Familiar (PAF) ou Polineuropatia amiloidótica. E antes que me digam que de familiar não tem nada, dêem-me a liberdade de referir um outro nome pelo qual é conhecida. Doença dos pezinhos. Soa-vos... Familiar?
Claro que soa. Pudera! Calcula-se que cerca de 6mil portugueses tenham esta doença de momento, ou pelo menos desde a última contagem. A paramiloidose familiar dá o prazo médio de vida de 1 a 4 anos após o momento em que é descoberta, se bem que por vezes possa chegar aos 10, portanto, qualquer estudo que possa ser feito não dá garantias de fiabilidade por muito tempo.
A amiloidose pode ser definida como a deposição extracelular da proteína fibrosa amilóide em um ou mais sítios do corpo. Pode ser depositada localmente, não tendo consequências clínicas, ou pode envolver vários sistemas de órgãos, levando a mudanças patológicas graves. Numa maioria das vezes, a doença não é identificada até se encontrar numa fase muito avançada, o que justifica a curta duração de vida dos enfermos após a sua detecção. As principais causas de morte são a insuficiência renal e doenças cardíacas.
A doença dos pezinhos não tem ainda cura, apesar de ser estudada já há alguns anos, (e ter havido progressos). Para já, a única esperança dos doentes é conseguirem um transplante hepático que atrasará a progressão da doença, diminuindo substancialmente, desta forma, os seus sintomas.
É curioso saber que a PAF foi pensada primeiramente como sendo uma lepra nervosa. Era facilmente detectada nos pescadores da Póvoa, os quais não tinham a sensação de dor quando se cortavam nas redes ou se queimavam com os cigarros. Corino de Andrade (1906-2005), grande neurologista português, reparou, nestes sintomas, traços característicos de uma amiloidose, se bem que com alguns "ajustes à portuguesa". Segundo o próprio, era reconhecida por "paresias das extremidades, particularmente das inferiores, diminuição precoce da sensibilidade à temperatura e à dor, começando e predominando nas extremidades inferiores, perturbações gastrointestinais e perturbações sexuais e dos esfíncteres."
Talvez a pior notícia desta doença seja o modo único como pode ser travada: Aqueles que a possuem não terem descendência. Porquê? Porque é uma doença hereditária, autossómica (mais concretamente, situado o gene responsável no "braço longo" do cromossoma 18) dominante, para melhorar ainda mais a situação. Pensa-se que a taxa de transmissão seja de 50%, o que significa que é tão provável ter um filho doente como saudável. Não há indivíduos portadores, como é fácil de concluir.
A paramiloidoise não é fácil. Dá luta até ao fim. Começa com uns adormecimentos dos membros que até dão jeito de vez em quando, umas perdas de peso e umas diarreias. Nunca é vista com a seriedade que lhe é devida na altura e, como tal, zanga-se, enfurece-se, ataca os nossos órgãos mais sensíveis. Quando lhe damos o devido valor, já é tarde.
Creio que o próximo passo a dar será impedir que ela se prolifere mais. Fazer testes à população, explicar-lhes o que irão sofrer, fazê-las reflectir. Motivá-las a pensarem duas vezes antes de escolherem ter descendência por métodos naturais. Dar-lhes incentivos, não só monetários, mas também de carácter psico-social. Dar-lhes alternativas a uma gravidez natural.
Esta doença poderia ter já sido travada há muito, mas, pelo contrário, sabem-se de 90 novos casos por ano em Portugal. Estamos sempre a tempo de tentar.
Fontes:
V.A., "Harrison's Principles os Internal Medicine"